quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lar, doce lar (num ano qualquer)

Estou da janela desde mais cedo e nada me chama atenção na rua. É tarde, naquele período crítico em que as pessoas saem do trabalho e o movimento é caudaloso. Não tenho nada em especial por fazer:uma pia cheia de pratos, copos e panelas para lavar e uma pilha de roupas sujas empilhadas sobre a máquina de lavar. Realmente nada que pudesse me inquietar. Minha esposa ainda não chegou em casa. É, ela chega quase sempre depois de mim. Na verdade sou eu que quase sempre nunca saio. Dizem as línguas, boas ou más, que ela é quem me sustenta. Acham que escrever é tarefa fácil e que não falta inspiração a um escritor.
Deixei todas as luzes apagadas e os aparelhos desligados. Mentira, o ar condicionado está ligado mesmo tendo a janela aberta a minha frente. Sensação curiosa esta: o ar quente de fora vem em baforadas contra meu rosto enquanto aqui está tão frio.
Não, não esqueci de buscar os filhos na escola. Ainda não tivemos a dádiva de encher a casa, cuidar de pequenos arranhões, ensinar a andar, falar e assim por diante. Não é que não os queira, o momento não parece apropriado. Joana trabalha tanto que muitas vezes a vejo apenas no café da manha. Estranho. Ela disse que chegaria mais cedo hoje e nada da campainha tocar. Ela sempre alertava que estava abrindo a porta e adentrando o lar, como se dissesse "bem, cheguei" e nunca dizia qualquer palavra. Estranho eu disse que arrumaria a cozinha mas ... enfim. Deve ser o trânsito.
Invenção interessante é a buzina, não é mesmo? Olho para baixo e ouço uma sinfonia em som nada harmônica. Ninguém gosta de receber aquela buzinada no ouvido, contudo todos adoram causar um alarde. E quanto barulho hoje. Preste atenção, nem dá para ouvir os motores, somente um monte de buzinistas, músicos sem qualquer dom para a vida social, a entupir os ouvidos de motoristas, transeuntes, moradores e quem mais estiver por perto, ou até por longe. Alguns devem pensar que podem assim abrir o mar de carros, repetindo a cena bíblica. Muita boa vontade é necessária.
Vai escurecendo azul o céu entre os prédios e a fumaça embaça o longe, até onde se possa ver. Não tenho este costume de observar o céu, muito menos de ficar da janela, pendurado além das paredes, hoje enormes. Hoje eu precisaa ver tudo de cima, distante do chão o quanto pudesse. E do alto ver o formigueiro humano - imagem por demais vulgar mas tão precisa. Ah, nem tanto assim: somos formigas às avessas, e como.
E então ouvi um barulho na porta, a maçaneta do quarto gira e nada. Sem perceber havia me trancado. Joana? Desta vez ou ela se esqueceu de me avisar que chegara, ou por curiosidade queria ver o que tanto fazia dentro do apartamento na sua ausência. Ao abrir a porta percebi que, de fora do quarto, a tv dava as notícias da noite para os móveis da sala. É, a tv também estava ligada.
- Olá!
Entre o que disse e sua resposta transcorreu tempo suficiente para me deixar afoito.
- Você nem para arrumar a casa, hein!
- Você nem para chegar mais cedo...
Findo o diálogo: luz acesa, janela fechada. Vou para a cozinha e começo a juntar os restos do nosso café e do meu almoço. Tudo separado, inicio a lavagem pelos copos. Formigas andam entre os azulejos apressadamente. Atravessam o mesmo caminho em dois sentidos e parecem conversar ao se depararem uma com outra. Devem estar dizendo: "vamos, há ainda muita comida por carregar". E me perco naquela confusão de minúsculas vozes. Como falam estas formigas, não me recordo de ver outra espécie tão tagarela. E como vivem felizes!
Terminada a pia, acompanho com os olhos o trajeto delas até a mesa. Atravessa azulejos, desce pro chão, passa sobre o tapete, sobe a parede oposta até chegar à borda da mesa onde um punhado de açúcar do café da manhã repousa branco quase escondido pelas patas, bundas e antenas negras e pequenas. Quem se importa com um pouco de açúcar na mesa.
Vou para sala e no intervalo da novela me pego pensando em virar formiga. Formiga de verdade. E sair em busca do meu torrão de açúcar.
Márcio Maffili Fernandes