domingo, 2 de agosto de 2009

A carta nunca lida (referência ao texto “Carta de amor”, publicado neste blog)

Amor,

precisava verbalizar, mas meus olhos, reféns dos teus, não poderia lhe encontrar. Desculpe o meio, mas esta carta é a última súplica em ação.

Depois que você se foi, a última luz que me sobrou foi a brasa do cigarro que você deixou aceso no cinzeiro, à beira da cama, no chão. O velho cinzeiro, único objeto seu ainda na não mais nossa casa. Não minha, não sua - apesar de ainda gastar minhas horas entre estas paredes fartas de nossa vida, de nossa história, nossas despedidas, nossos pedaços e marcas. Manchas na parede que marcaram a alma com os dias vividos juntos. E agora sobrou a luz vaga, esfumaçada e buliçosa do cigarro, prestes a findar e me deixar na escuridão novamente com o calor do seu corpo ainda radiando o ar ao meu lado.

Oh Deus, arranca do meu peito este vazio de não te ter mais, que me tira cada segundo da vida. É no tic-tac do relógio que vejo quanto tempo deixei passar. E em observar vou deixando cada segundo passar como se cada badalo do pêndulo fosse um espinho a entrar no meu pé sem deixar nenhum pedacinho sequer pra fora, pra puxar com uma pinça.

E é com os pés feridos que sai perdido, sem rumo por estas vielas escuras e sombrias, perto de casa. É que olho para o céu cinza-chuva da madrugada e peço para que o sol venha logo me aquecer. Faz um frio ventado enquanto a cidade se aquece em seus cobertores e camas. Olho as luzes dos postes que são juntas todos os caminhos da cidade, mas nenhum poderia me levar até você. Este rumo já não existe mais, é trilha fechada na mata que cresceu no meu coração.

Na volta, o porteiro se mostrou preocupado. Vacilou ao me entregar a chave do terraço: "olhe, não me vá fazer nenhuma besteira bêbado deste jeito!" Subi os 12 andares pelas escadas rodando, rolando, elevando. Elas me deixaram mais tonto que o whisky barato daquele buteco ali perto do Mercado Caiçaras.

Há muito não vinha aqui do alto ver a cidade. Para ser bem sincero, evitar todas as festas dos vizinhos no terraço fez com que minha única recordação daqui fosse ao seu lado, no primeiro dia de “nosso lar”.

Foi quando o sol começou a rasgar o céu e me dividir em quente e frio, e eu na metade, que me lembrei de que naquele dia, ali mesmo, você me olhou fundo nos olhos, pegou minha mão e deu um beijo de palma. ”Tome um beijo pra ti ... que é pra guardar pra um momento de necessidade”. E este beijo prescrito você me deu agora, sufocado pelos anos guardados pelos poros da pele.

No meu silêncio, seguirei a sombra dos meus passos. Não se preocupe, estarei acompanhado de minhas histórias. Tão poucas que repetirei as mesmas a esmo até chegar a contar tantas vezes que mudarei seus rumos e virarei lenda sem autor, folclore de minha já falta de lembranças reais.

E quem sabe, quando não houver mais história alguma, eu pare à beira do caminho e volte. Simplesmente assim, inventando uma vida nova, diferente. E quando chegar ao ponto de partida não terei mais que aceitado que tudo já estava em seu lugar e que no fundo a insatisfação é minha. Basta torcer a alma encharcada de lágrimas e seguir seco.

Márcio Maffili Fernandes (02/08/2009)

terça-feira, 9 de junho de 2009

À espera

Escorrendo felicidade dos olhos, em trilhas pelas bochechas vermelhas de frio, correu ao encontro daqueles braços que o abraçavam por inteiro. A pele quente de saudade aquecia novamente a alma. As mãos ávidas por se afundarem naquele corpo apertavam o outro o mais forte possível contra si, numa tentativa de fundir duas metades inteiras por nascença, mas separadas para um dia se unirem em comunhão de dias com mais horas que as horas para se dar mil voltas ao mundo! Plenitude assim não acontece da noite pro dia. Minto.

Esta era a imagem que estava na cabeça. Sentado a beira da cama, com os pés descalços na cerâmica fria do chão e os olhos fixos naquele retrato papel de parede em que apareciam sorrindo. Sorriso cúmplice de quem guarda pra si uma história de criança, de brincadeiras, roda e pique-pega. Inocente a imagem ali posta, natural. E muitas lembranças de pouco tempo juntos, mas intenso como deve ser o tempo dos amantes que se amam escondidos pelas brechas do dia. Apesar de não serem amantes e sim amados.

Pensava no dia que estava por chegar, mas sobretudo nos dias que ainda restavam aguardar. Longa espera de cinco dias. Como dizem os mais velhos: “o tempo passa, meu filho”. Mas nestas horas – na confusão de dias longe e ansiedades por satisfazer – cada segundo é travado pelo estalo do relógio regulando hora de acordar, hora de trabalhar, hora de comer (...) Só se esquece de anunciar a hora de tirar a cara de bobo do rosto e aquele sorriso ansioso por ser mordido novamente.

Triste é a ansiedade. Pior que a fome que mata. Aquela não deixa nem a possibilidade de remissão pelo apodrecimento do corpo. A ansiedade é como um homem morto de fome, repleto de sementes, terra, sol e água a tentar enfiar goela abaixo do chão crespo os embriões de vida. Regar e deixar a luz do sol fertilizar. Mas nunca ver sequer um ramo verde brotar do abotoado marrom que já inunda o corpo e a alma. Desejoso quase de comer lama e as sementes torradas pelo sol para não passar a fome de esperar.

Dormir também é difícil. Inquieta-se ao deitar pois não sabe se o sonho que se tem é a vida real ou se a vida que levamos acordado é na verdade o sonho que vivemos enquanto nossa alma dorme, inconsciente e letárgica neste corpo – sopro de Deus em direção ao nosso crescimento.

Cinco dias se passaram. E tudo aconteceu tão diferente da imagem que fez. Foi muito melhor.


Márcio Maffili Fernandes (09/06/09)