quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Há vidas que chovem

Saiu de casa um dia, ainda nem havia feito a digestão do almoço e foi até um circo que sempre se armava perto de casa e ali comprou um algodão doce imenso, que mal equilibrava com apenas uma mão tesa presa à vareta de bambu. Dando voltas, lambuzou-se nas memórias. Elas nunca se apagaram com o tempo que queimou um pouco a retina, mas não ressecou o coração quente.

Mentira. Não era muito afeito a doces. As memórias se prendiam ao condensamento de leite à mais crocante maisena, acrescidos de uma pitada de poeira doce de cacau. Mistura a qual chamava de palha italiana – estranho nome para uma goma escura açucarada do melhor bom gosto dos tachos.

Ainda criança tomou o costume de andar sempre com um guarda-chuva debaixo do braço. Podia estar fazendo um sol de inverno, seco e frio, que lá estava o pretinho e magrelo companheiro em seu suvaco. Não era medo de chuva que ele tinha, até se deliciava nela. Sempre gostou das tardes quentes, quando sem qualquer aviso o céu se transborda em pingos que, fervidos pela quentura do asfalto, abraçavam sua pele. O guarda-chuva não era para o modo de usar a que seu nome se propunha. Ele o carregava temia as lágrimas dos homens, mais catastróficas que as maiores tempestades.

A primeira lembrança de choro que tinha era do dia em que procurou sua avó no quintal, na casa, na rua e nem seu cheiro estava mais no ar. Aquele menino cheio de porquês, engasgou-se da pergunta e só entendeu o que tinha acontecido quando viu naufrago no fundo do aquário seu peixinho vermelho, jogado depois de morto na privada, restando apenas lembranças.

Dizem que nunca chorou; nem ao menos um choro seco foi visto por qualquer naquele rosto moreno, liso e brilhoso. Vivia pagando barato pela simpatia alheia bastando mostrar os dentes alinhados e brancos, pechincha de feira, apesar de mercadoria rara nestes dias de “eus”, “nem vi”, “tô com pressa”. Uns até arriscariam dizer que, ao nascer, o médico lhe deu um tapa na bunda e do engasgo ele sorriu. De canto de boca, mas era clara a intenção do gesto. Dai respirou, mesmo doloroso, o ar novo e logo depois caiu em gargalhada gostosa, de bebê sadio acometido de cócegas simples ou alegria gratuita.

De bebê sadio a criança quieta e inteligente, pouco se passou. Umas estações, alguns verões e muitas águas a beira do rio, a beira da mesma calçada, dos mesmos andares.

Vivia se questionando se é Deus quem nos dá os sonhos pra nos mostrar as possibilidades do que ele mesmo pode nos oferecer ou se Ele, em Sua bondade, poderia escolher dos nossos sonhos o que viveríamos. Preferia a segunda hipótese, lamentavelmente a menos provável já que ainda apesar de só sonhar com um mundo melhor, pouco se via neste sentido.

Era um caso raro de vida reta. Ele mesmo deve ter mostrado aos matemáticos a plenitude das paralelas e o paradoxo de nunca se encontrarem, nem mesmo na infinitude do universo. Um dia disse a uma de suas namoradas que a melhor definição natural para o fenômeno eram as gotas de chuva que, mesmo lado a lado, só se encontram quando deixam de cair e já não são mais gotas e sim enxurrada. E, por paralelismo das idéias, acreditava na transformação dos homens em anjos através do amor ao próximo, quando se muda o rumo da vida na direção de um outro ser humano, tão ou menos humano que nós mesmos.

Não gostava da idéia de envelhecer, mas as rugas insolentes se abriram, mesmo assim, no seu rosto, na borda dos olhos, na testa tesa.

Enviuvou-se por 2 vezes e, sem filhos, passou a morar com o irmão mais novo, sua esposa, 2 filhas, 2 cachorros e 5 periquitos.

Até que, num dia o sol amanheceu dormido no canto da janela do seu quarto. Morno e preguiçoso, acordou-o em cócegas com a visita dos seus raios leves que levavam consigo a mansidão da noite pra bem longe.

Uma chuva se aproximava. Nuvens enchiam o céu e muito lhe lembraram das noites em que sozinho ouvia a tempestade cair, escorrendo pelas paredes, lavando as calçadas e se afogando pelas galerias num rio, como se aquilo fosse a única coisa possível a se fazer. Decidiu-se por sair assim mesmo, após o almoço.

Comprou um algodão doce por ali, vendo as crianças correrem entre brinquedos coloridos e barulhentos e desatou a andar, como se tivesse sido impedido de usar as pernas pela vida toda e agora se maravilhasse de sua capacidade locomotiva.

A caminhada estava tão agradável que nem se dava conta do caminho que fazia. Resolveu sair de casa, sem avisar ninguém: queria andar, se possível até o mar. Sentia um perfume sensível no ar da rua. Misturava-se a cada vapor emanado pelas pessoas e formava novas e deslumbrantes fragrâncias numa coreografia invisível aos olhos, mas mesa farta para seu nariz. Era um cheiro macio de não-sei-o-quê maduro com dia de Natal na casa da vó. Era uma tarde qualquer, de um dia qualquer, sem qualquer pensamento apurrinhando a cabeça.

Quando deu por si, seguia os pássaros que, neste fim de outono, o levaram até o cemitério. Sentou-se numa praça entre os salões de velório, e pôs-se a observar o vai-e-vem de saudades adiantadas e tristezas impronunciáveis.

Neste dia, deixou em casa descansando atrás da porta da sala o seu companheiro de sempre e a chuva só não molhou mesmo suas entranhas salgadas quando, ali sentado observando os corpos vivos e mortos, o céu decidiu regar as sementes, as sementes que já são árvores e as árvores que já se carregam de frutos e flores, suculentos e perfumados.

A hora, criança manhosa cheia de graça, iniciou uma brincadeira. Pique-esconde. Saiu correndo e, antes mesmo dele começar a contar, desapareceu debaixo daquela chuva, entre árvores e túmulos. Na falta do tic-tac para ritmar o coração, a vida suspirou no silêncio que se aportou no seu peito ainda cheio.

E então uma lágrima escorreu do seu rosto. Era a tristeza de não poder mais viver sua felicidade na terra. Os anjos vieram buscá-lo em revoada como numa procissão sem matraca, sem rumo, sem rua, sem céu. Naquele dia nenhum homem chorou debaixo de qualquer guarda-chuva que fosse.

A vida então parou. A antítese do sonho vivido, da morte ressuscitada em chuva, do espírito preso a uma fagulha de alma.

E, provavelmente pensou: “um dia a gente aprende a não deixar a vida passar ... feliz de mim que descobri isso ainda aninhado no ventre da minha mãe”.

E assim se foi.

E assim foi.

Márcio Maffili Fernandes (01/09/10)