sábado, 8 de novembro de 2008

Um anjo triste


Era noite sem estrela, sem nuvens, sem chuva, sem lua. Podia-se dizer que naquela noite o céu havia sumido, mas ninguém ainda tinha dado o fato por percebido. Inclusive eu. Até que, em uma última súplica, recorri aos céus e dei de cara com o inexplicável. Digo última súplica no sentido de já ter recorrido a tudo o que se possa imaginar dentro da minha cabeça: pensar na vida de forma sistêmica, tentar ver pelo outro lado (não sei nem exatamente o que isso quer dizer na verdade, quando nem sei de que lado certo me encontro), pedir ajuda a amigos e algumas outras coisas. Ou seja, tudo - para não dizer em vão -, não funcionou muito bem ou como esperava.

Estava em casa, antes de uma festa do trabalho. Fim do expediente de sábado e todos foram para suas casas, descansaram, juntaram-se aos esposos e esposas, namorados e namoradas, alguns com seus filhos também, e trataram de se arrumar e de se perfumar. Eu ainda estava no “cheguei em casa”, já há um tempo. Isso porque após abrir a porta nada fiz. Minto: coloquei a pasta no sofá, tirei o casaco e o sapato. De meia, à beira da janela, estava olhando a cidade e seus movimentos desgrenhados e todas as luzes se acendendo, iluminando mais um pôr-do-sol. Do alto do meu apartamento, podia ver os últimos raios de luz tocando os prédios mais altos e as sombras já engolindo as ruas e tudo que nelas estivesse. O céu foi escurecendo até não se ver mais o astro, devorado por outros prédios e pela fumaça da cidade. Mas como já disse, ao invés de um céu, não havia nada sobre as cabeças de todos. O que surgia no lugar do azul era um desbotado e opaco nada. E logo quando eu mais precisava olhar para o alto, mirar uma estrela e pensar em Deus, esquecendo as coisas mundanas e como elas nos transtornam sem necessidade alguma.

            Abri a janela e percebi que, sem o céu, o vento havia sumido. E pensava. Quando tinha lá os meus vinte e alguns anos deixei que minha sombra me seguisse, achando que ela pudesse me alcançar sempre. Até que um dia olhando para trás vi q ela havia se perdido entre os postes. E o que é um homem sem sombra? Sem passado? Sem história? Não consigo mais me lembrar dos tempos que se foram. Lembro do hoje, do presente, mas do que um dia foi, vivi e fugi, eu me esqueci. As lembranças se perderam num bosque como borboletas recém saídas do casulo tentando voar entre os galhos, folhas e flores. O que elas encontraram pelo caminho, quem as viu passar, eu também não sei. Sei que eram tão leves e até capazes de subir com a brisa chegando às nuvens e de cair com uma chuva fina. E se numa poça alguém as encontrar, provavelmente não dará a devida atenção, até que correndo pelas sarjetas se perderá num rio e quem sabe desaguará num oceano imenso onde um peixinho possa comê-la e sentir-se saciado. E a vida tem sido assim desde então.

Com a boca seca, fui até a cozinha ainda de meia e sentia o chão frio nos meus pés ao encher o copo d’água e era possível escutar a voz da minha mãe dizendo: “vai acabar gripado, depois não reclame”. Foi sempre assim, até eu sair de casa. Ouvi um vento muito forte abrir as cortinas e esvoaçá-las. Assustado, corri para ver o que era.

Com um grande sobressalto e um copo espatifado no chão, entrei na sala. Havia uma pessoa sentada no parapeito da janela, vestida por um branco mais puro que o mais fino algodão. Tinha os cabelos finos e leves na cabeça, na altura do pescoço, estava de costas para mim e não podia ver seu semblante, se era homem ou mulher. Apesar do espanto inicial, algo deixou meu coração tranqüilo e em paz. Havia uma sensação renovada no ar, um cheiro doce e delicado como baunilha. Quando ia dizer algo, só escutei um pedido de silêncio, como se o fizesse a um bebê recém-nascido para que se acalmasse no colo: shiiiiiiiiii...

Fui andando devagar em direção a janela, sem qualquer medo ou sobressalto. Uma força parecia controlar meus impulsos e me fazia agir como se tudo aquilo fosse natural. Ali cabisbaixo, apontava lá para baixo com suas mãos suaves e cuidadosas.

E foi exatamente aí que me dei conta de que aquele menino de sorriso honesto, olhos tristes e ternos que passava na calçada e eu observava minutos atrás, era eu.  Ainda jovem, sem rugas, sem máculas, com cabelo. Um anjo, e não as borboletas veio me recordar daquele menino filho de Deus.

            Era como se o mundo fosse este de agora com seus prédios novos, carros modernos, modas outras, mas ali estivesse minha recordação viva, lá embaixo na rua. Apesar de distante, podia ver com detalhes cada expressão no rosto daquele garoto-eu. E não foi como se passasse um filme da minha vida. A sensação que eu tinha é de que nunca deixei de ser aquele que eu via, que ele continuou sempre a levar a minha vida, independente de mim.

            Foi ai que pensei em quando eu o abandonei e quis ser adulto. Em que esquina ele ficou para trás sozinho, perdido, sem rumo? Isso era o que menos importava naquele momento. Meu ímpeto era de correr até o elevador e ir atrás dele na rua me afogar entre as pessoas e carros até poder olhar aqueles olhos, que nunca tiveram a chance de ver no que deu a minha vida. Mas tive uma vergonha imensa de mostrar que, de todas as expectativas, só restaram frustrações.

            E foi assim que entendi o que era realmente a felicidade e sua expressão mais bela e fiel na vida. Pra começar o anjo estava triste sim, mas porque já havia tentado falar comigo diversas vezes e não conseguia ser ao menos percebido por mim. Depois, ver eu ali naquele tempo, hoje já distante, me mostrou o quanto era feliz e sabia! Era a felicidade em sua expressão mais natural e pura. Aquela que não se compra, não se pede, não se ganha nem do Papai Noel.

            A felicidade estava ali, estampada naquele eu andando na rua porque tinha um mundo de oportunidades na minha frente. Ali estava claro que poderia criar as expectativas que quisesse, esperanças que na minha cabeça brotassem eram fontes das mais abundantes de minhas fantasias. A felicidade não está em si na realização, mas sim em apostar em algo e acreditar. É ter fé no amanhã, mesmo tendo que ir a pé pra casa pra poder comprar cem gramas do biscoito mais gostoso do mundo - de nata com cobertura de chocolate - para ter a sensação de seu desmanchar na boca. E andar a pé ser uma oportunidade de estar com os melhores e mais importantes amigos. Compartilhando aqueles biscoitos e a vida em si mesma! Risos, lágrimas, sonhos, dores, saudades. Ou apenas rir das pessoas na rua a nos olhar sem entender aquelas gargalhadas, ou o pranto jorrando pela face.

            Foram muitos passos juntos, muitos dias, muitas palavras, muita sola de sapato e muita dor de barriga de tanto rir!Muita felicidade sim!Inocente, clara, leve, sem culpa!

            Foi me lembrando disso tudo que, ao observar melhor, vi que o menino-eu não estava sozinho lá na rua. Havia três amigos com ele. Um calmo e amoroso companheiro de estradas diversas; um astuto, bem humorado e inteligente parceiro de vida; e uma moça, Capitu de Machado, fruta doce de quintal como pitanga.

            No balanço das lembranças, o anjo num salto sumiu pelo vão da janela acenando um adeus e esboçando um sorriso de canto de boca. O céu se fez estrelado e já não via aqueles quatro andando na rua.

            Preciso encontrar aqueles três e eu. Mas como faço isso nestas ruas tão cheias? Se você os reconhecer por ai, pare-os na rua e diga para aparecerem aqui em casa! E que tenho saudade do abraço. E que estou preparado para ser feliz de novo.

Eu corri descalço até a calçada, mas já os havia perdido de vista. Ah, diga também para que tragam todas as borboletas que encontrarem pelo caminho!

Márcio Maffili – 8 de novembro de 2008

sexta-feira, 2 de maio de 2008

No céu, no mar, na terra! (2 de maio de 2008)

Não é de hoje que muitas mulheres, em torno de seus anos todos (acredito que senhoras ainda hoje), sonham em serem aeromoças. Na verdade, hoje em dia uma profissão como qualquer outra, mas, naqueles tempos idos, o status do uniforme sempre alinhado, a beleza pressuposta, o fato de conhecerem os lugares mais distantes do mundo e mesmo por cruzarem os céus, tudo isso e muito mais atraia os olhares mais sonhadores. E se era sonho das moças, não podemos nos esquecer que também era sonho dos moços. Por tudo dito antes, e uma pitada de incertezas – afinal de contas nunca se sabe pra onde elas estão embarcando no dia seguinte, quando desfilam pelos corredores dos aeroportos -, a profissão tornou-se fetiche, sendo possível contratar strippers com os mais variados uniformes e disposições - assunto este que não bem vem ao caso agora.
“Bom dia, é um prazer recebê-lo em nossa aeronave!”. Poxa, e tem como não se sentir bem desta forma? Você pede uma cerveja, ela traz sorrindo. Serve sua refeição e você nem precisa arredar a bunda do lugar. E melhor: ainda volta pra recolher pratos, talheres, copos etc. O que mais alguém pode querer? E outra: qual homem nunca se apaixonou instantaneamente por uma?
Só me questiono uma coisa: porque hoje é tão raro encontrar empresas dispostas a treinarem seus funcionários para melhor servir? Penso que as aeromoças deveriam substituir secretárias, recepcionistas, comerciantes, operadoras de telemarketing, garçonetes e todas as outras profissões possíveis. O mundo seria muito melhor assim. Seria, literalmente, ser tratado como se o Céu tivesse descido a Terra. Imaginem só a maravilha que seria se ao invés de um motorista de coletivo, fossem aeromoças pilotando os ônibus pelas ruas da cidade? Ecoariam pelas avenidas em voz calma, sensual e precisa: “próximo destino: cascadura”. Ou para a alegria de alguns: “Next stop: cascadura station”, como no metrô do Rio.
Pensando bem, há sim alguém que possa não gostar da existência delas. E mulheres mesmo: esposas acompanhadas de seus ilustres maridos devem, em alguns momentos, sentirem-se ameaçadas por aquela que, por mais horas passe viajando, não fica descabelada nem com cara de quem acabou de acordar. E é neste ponto que surge um fato: a cada dia cresce o número de aeromoços – opa, opa, deve ser por isso que a expressão caiu em desuso sendo empregada uma palavra tão mais sem graça e sem efeito: comissárias(os). Moços que voam definitivamente não são bacana.
E as situações mais curiosas acontecem todo momento pelos céus. “Passageiro Silvio Santos. Passageiro Silvio Santos: favor comparecer à cabine”. Instante de silêncio e todos procurando o locutor e apresentador. Mas quem surge é um adolescente. “O tempo estimado de vôo é de 5 horas, o clima está bom, a temperatura externa à aeronave é de 54ºC negativos”. Ah, sim. É por isso que está cheio de cristais de gelo nas janelas. E esse vento gelado congelando minhas pernas? Será que vem lá de fora? Pra que ar condicionado se lá fora está tão frio? Ainda bem que me avisaram porque caso eu passe mal, não abro a janelinha. Mas e a curiosidade: qual som faz lá fora quando não passa algum avião?
E é nestas horas que uma expressão tão antiga torna-se um alarde terrível: “olha o passarinho”, diz o tio coruja para a sobrinha, e todos espantados olham pela janela. Ou a melhor de todas: a aeromoça retira do bagageiro uma pequena maleta autonomeada “Demo Kit” (só pode ser coisa ruim), e anuncia as medidas de segurança em caso de despressurização da cabine e pousos de emergência (não disse que era ruim). E é neste momento que nunca consigo olhar para a aeromoça “muda” fazendo gestos mecânicos como se robô fosse e matando qualquer um de vontade de rir. Melhor seria se ela dublasse o que a outra diz ao microfone. Nada tira da minha cabeça que há um rodízio entre as que vão ler e as que vão fazer papel de bobo da corte e mais: as que ficam lá atrás ficam sempre rindo umas das outras. Não é possível que existam voluntárias para isso.
Fato é: como anjos, são elas que nos guiam até as nuvens, nos fazem sentir bem mesmo a muitíssimos pés de altitude, nos servem e estão sempre dispostas a resolver qualquer problema que possa surgir. Que Deus, em troca deste trabalho bem realizado, possa assim tê-las sempre pousadas em Suas mãos, cruzando os céus nos mais diferentes destinos.
Mas foi na área de embarque de táxis de um aeroporto que, esperando na fila por um táxi, debaixo de uma chuva terrível, um carro passou jogando água suja da rua em todos que estavam ali. E foi da boca de uma mulher com suas malas em mão que saiu: “oh seu fedaputa!”. Olho para o lado, e vejo a aeromoça do meu vôo. Se a boca dela não tivesse sido tão rápida, teria a minha feito esta gentileza.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Um Presente (24 de agosto desde 2005)

me dê sua mão,
vem comigo
vamos correr meio mundo
em busca de um porto para o céu
onde pegaremos um barco a vela
destinado a algum lugar longe
longe de tudo
quando poderemos ser felizes

vamos,
acelere o passo
suba montanha,
desça rio,
atravesse lago
e se precisar te ajudo
mas seja depressa
o momento é agora
não podemos esperar

segure firme,
agarre-se na cauda de nuvens
pule florestas, cidades, pastos
somos eu e você em busca
de você e de mim

não pergunte
sinta e não pense,
estou aqui
veja a estrada aberta até nosso porto
-visível para nós dois apenas-
e, avistando o grande lenço branco
despedindo-se dos quatro ventos,
aperte o passo
chegaremos a tempo
e finalmente embarcaremos
rumo alguma estrela
onde a luz do dia não se apaga com a noite
e a vida é possível
(ao seu lado)
Márcio Maffili Fernandes