quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Devaneios d’outros (2006) (a Rubem Alves)

Sabe a vida o que faz de nós, se sabemos o que fazemos dela. Pensava a senhora escolhendo a alface mais verde e folhosa na feira perto de sua casa. Havia acordado ainda a sonhar há menos de uma hora. Fez as preces matinais ao lado de Nossa Senhora da Rosa Mística, que ficava próxima à sua janela, ao lado da cama. Era devota fervorosa da santa, a quem se sentia devedora por uma intercessão milagrosa: aproximava-se da morte após dura cirurgia para retirada do útero infeccionado, quando as irmãs em prece pediram a Ela por sua vida. Muitos anos se seguiram, muitas outras doenças e complicações apareceram, mas até hoje a mesma santa participa suas queixas e agradecimentos aos céus.
Diriam (aqueles que não a conhecem bem) que se recordava sempre do marido logo ao primeiro ar da manhã penetrar-lhe consciente as narinas. Mentira. Em momento algum ela deixara de viver em função dele, mesmo depois de sua morte - o coração um dia parou e nunca mais ela ouviu seu doce "bom dia amor". E os dias deixaram de certa maneira de serem bons dias. E passaram apenas a serem dias, como quaisquer outros, não importando serem terças, sábados ou quintas. Ausência sempre abre uma lacuna nas horas, faz razão obscurecer, mesmo que quase tudo siga como antes.
Escolhido o pé de alface, tomou o caminho de casa. Almoçaria sozinha, era quarta-feira. Viúva por anos, sem filhos e uma única fotografia na sala, exposta para si. Amarela e fosca. A ansiedade das mãos dadas, o sorriso assustado pelo flash, o vestido e grinalda mais que brancos, o arroz chovendo nos cabelos e convidados ao fundo. Este era o quadro de seu casamento.
A cada pedra atirada contra o outro, guardamos em nossos bolsos uma pedra exatamente da mesma cor, tamanho, peso e textura. E então riu saborosamente. Ele não se aguentou ao lembra-se deste ensinamento dado por seu pai. E ainda ao lado do caminhoneiro que acabara de xingá-lo através das mais escabrosas palavras, sorria. O trânsito estava realmente complicado, ele havia fechado o caminhão, mas nada demais. O filho assustado no banco de trás, preso ao cinto, estava de olhos arregalados, vidrados. E o pai sorrindo, imaginando o caminhoneiro a cada injúria arremessada a ele escolhendo uma pedra de uma fonte inesgotável delas, em conformidade com a agressão desferida. E já sem espaço em seus bolsos, acumulando pedras entre os braços e seu corpo, entupindo a cabine já sem poder se mexer lá dentro. comprimido por todos os lados e pesado.
Guiou o carro até mais a frente, enfim haviam chegada à escola do garoto. O pai ainda esboçava largo sorriso e o filho ainda assustado desenganchou o cinto, beijou seu pai e desceu na calçada. Ia andando, dizendo "tchau pai", e este o gritou pelo nome, precisava lhe dizer algo. Em pé na calçada, ainda esboçava um sorriso ao lado do filho. Ensinamento de pai para filho: pai agachado, barulhos, brilho nos olhos, sorrisos e um abraço. Apenas um, bem apertado.
Que Deus duvidasse sim dela. Poderia não duvidar de qualquer um, mas dela não. Queria mais é surpreendê-lo, ir além do que Ele pudesse ter pensado para ela. Não se sentia extraordinariamente mais capaz que ninguém, mas sentia que podia muito. Mas ainda exitava, e levou o questionamento ao marido quando este chegou em casa. É possível a Deus duvidar? Provavelmente sim, indicou o esposo convicto, mesmo em dúvida. Lembrou a ela de que tudo é possível a Ele. Mas duvidar da própria criação? Surpreendeu-se ela própria com a contra-argumentação que lhe surgia e foi preparar o jantar com a ajuda do marido, ambos incógnitos. Ambos amam e isso é suficiente apesar de não saberem.
O suficiente é sempre mais importante do que o desejado. Na verdade o desejado é sempre mais importante, equivocadamente. Acho que as vezes não me basto e crio pessoas que vejo na rua. Dou-lhes história, sentimentos, problemas e até pensamentos. Sou bondoso com elas na maioria das vezes por identificar-me com suas dores e alegrias. Não sei o que ando fazendo da minha vida, se atiro pedras e muito menos se Deus duvida de mim, mas tudo me preocupa e me sinto melhor assim.
É necessário boa-vontade aos homens e isso estes homens que crio têm. Se fosse escrever a um extra-terráqueo relatando a ventura de viver na Terra, diria: pode não parecer, mas boa vontade não falta a estes meus companheiros. Talvez lhes falte um lugar, diferente de todos que conheço onde eles caibam juntos. Olho no mapa e acerto com os olhos: Boa Esperança aos homens de boa vontade. Seria suficiente, não?
Márcio Maffili

domingo, 7 de outubro de 2007

À luz de vela ( 13/10/2005)

Preciso confessar alguma coisa a você; ou várias: não sei até quando você suportará me ver falar. Na verdade quer realmente saber? Todas as pessoas que procurei nestes tempos não me deram muita atenção e me restou apenas você. Não porque tenha pouca consideração por quem representa pra mim, não é isso, me entenda: me é difícil ser franco contigo, apenas isso, o que já se faz muito.
Pensando melhor não perca seu tempo comigo. Antes pararmos por aqui, não ficarei chateado. Sozinho me viro e continuamos companheiros. Digo isso porque talvez lhe doa um pouco também. Tenho a alma dolorida e a comunhão do sofrimento é perigosa demais. ( Pausa para pensar e decidir em seguir ou não.)
Há um tumulto lá fora. Corre-se atrás, de, para - sem nem se saber o passo. Ninguém percebe o próprio passo. O som é quase ensurdecedor. Quão vorazes são os homens, somos nós, eu e você, embora não creia nisso. É isso que me assusta. Mas você não sabe disso, de mim, da pobreza de minha alma. Sou inofensivo, contudo não sou um anjo, não sou verdade. E isso é por demais cruel.
E de frente ao espelho do banheiro é que vacilo em acender a luz. Não enxergo nada há dias. Só o barulho abafado pelas portas e janelas toca meu corpo. Encharcado de banho, respingo no piso e formo poça, como se derretesse ali estático diante da pia. Eu a poça. Penso em me desfazer com ela entre as frestas e rejuntamentos e escorrer pelo ralo. Mas temo tudo; quase tudo: frio, fome, solidão, incapacidade, altura, escuro...medo de ter medo.
Num estalo faço a luz acender com os dedos enrugados d'água. Abra os olhos e me vejo cego diante do espelho. Vejo apenas reflexos em flashes de claridade e escuridão. Estou tonto e reuno forças para me manter de pé. Me apóio na pia sem vê-la. Pela primeira vez enxergo: por isso a cegueira.
Diante dos meus olhos a vida se desembaça no espelho. Pouco a muito, com a ponta dos dedos, desmancho a névoa que escorre em gotas frias. Dói como se parede eu fosse e tivesse a tinta arrancada em cascas com uma espátula de aço. E aos poucos se expõe o reboco, aspero, grosso e feio. E frágil. Me envergonho ao me mostrar assim a você, sem as belas molduras com paisagens de antes.
A água do meu corpo ferve com a febre que me percorre. Penso em apagar a luz, ainda não vejo direito e me surpreendo com o passar da dor. Você a viu vaporizar com a água?
Um clarão muito forte interrompe o banheiro. Um trovão muito claro treme janelas, paredes e a luz se apaga. Só então ouço a chuva que gotejava há tanto tempo no vasculhante. Obrigado a esta nova cegueira de luz, fico ansioso por ver o espelho. Onde está sua imagem? O que se vê em um espelho no escuro? Com a mão ainda a desembaçá-lo, sou tomado por forte ansiedade. Tenho certeza de que agora posso ver, mas sem luz...não posso te tocar.
Corro ainda nu a tatear movéis pelo corredor, sala, cozinha. Encontro vela no armário. Tropeço na mesa, fósforo na mão, fumaça e luz. Baça e insistente chama me ilumina. Volto ao banheiro e com os olhos de ver, lhe vejo. À minha frente, assustado, pupila dilata pelo negrume do ar, rosto respingado, imagem-reflexo. Toco ao avesso sua face angelical. Um mar inteiro se forma em seus olhos densos, penetrados nos meus.
Obrigado por me ouvir e me ajudar à sua forma: era tudo de que precisava agora. Não questione e nem precisa esboçar este sorriso tão lindo, sei que se feriu um pouco. Mas me perdoe. E me perdoe as imperfeições, serei mais forte de hoje em diante, não como tentei antes. Tudo me importa, você me importa.
Agora siga adiante, segue rumo. Estarei sempre com você, sendo você de hoje em diante. Sopro a vela e aguardo em pé a chuva passar.

Márcio Maffili