Sabe a vida o que faz de nós, se sabemos o que fazemos dela. Pensava a senhora escolhendo a alface mais verde e folhosa na feira perto de sua casa. Havia acordado ainda a sonhar há menos de uma hora. Fez as preces matinais ao lado de Nossa Senhora da Rosa Mística, que ficava próxima à sua janela, ao lado da cama. Era devota fervorosa da santa, a quem se sentia devedora por uma intercessão milagrosa: aproximava-se da morte após dura cirurgia para retirada do útero infeccionado, quando as irmãs em prece pediram a Ela por sua vida. Muitos anos se seguiram, muitas outras doenças e complicações apareceram, mas até hoje a mesma santa participa suas queixas e agradecimentos aos céus.
Diriam (aqueles que não a conhecem bem) que se recordava sempre do marido logo ao primeiro ar da manhã penetrar-lhe consciente as narinas. Mentira. Em momento algum ela deixara de viver em função dele, mesmo depois de sua morte - o coração um dia parou e nunca mais ela ouviu seu doce "bom dia amor". E os dias deixaram de certa maneira de serem bons dias. E passaram apenas a serem dias, como quaisquer outros, não importando serem terças, sábados ou quintas. Ausência sempre abre uma lacuna nas horas, faz razão obscurecer, mesmo que quase tudo siga como antes.
Escolhido o pé de alface, tomou o caminho de casa. Almoçaria sozinha, era quarta-feira. Viúva por anos, sem filhos e uma única fotografia na sala, exposta para si. Amarela e fosca. A ansiedade das mãos dadas, o sorriso assustado pelo flash, o vestido e grinalda mais que brancos, o arroz chovendo nos cabelos e convidados ao fundo. Este era o quadro de seu casamento.
A cada pedra atirada contra o outro, guardamos em nossos bolsos uma pedra exatamente da mesma cor, tamanho, peso e textura. E então riu saborosamente. Ele não se aguentou ao lembra-se deste ensinamento dado por seu pai. E ainda ao lado do caminhoneiro que acabara de xingá-lo através das mais escabrosas palavras, sorria. O trânsito estava realmente complicado, ele havia fechado o caminhão, mas nada demais. O filho assustado no banco de trás, preso ao cinto, estava de olhos arregalados, vidrados. E o pai sorrindo, imaginando o caminhoneiro a cada injúria arremessada a ele escolhendo uma pedra de uma fonte inesgotável delas, em conformidade com a agressão desferida. E já sem espaço em seus bolsos, acumulando pedras entre os braços e seu corpo, entupindo a cabine já sem poder se mexer lá dentro. comprimido por todos os lados e pesado.
Guiou o carro até mais a frente, enfim haviam chegada à escola do garoto. O pai ainda esboçava largo sorriso e o filho ainda assustado desenganchou o cinto, beijou seu pai e desceu na calçada. Ia andando, dizendo "tchau pai", e este o gritou pelo nome, precisava lhe dizer algo. Em pé na calçada, ainda esboçava um sorriso ao lado do filho. Ensinamento de pai para filho: pai agachado, barulhos, brilho nos olhos, sorrisos e um abraço. Apenas um, bem apertado.
Que Deus duvidasse sim dela. Poderia não duvidar de qualquer um, mas dela não. Queria mais é surpreendê-lo, ir além do que Ele pudesse ter pensado para ela. Não se sentia extraordinariamente mais capaz que ninguém, mas sentia que podia muito. Mas ainda exitava, e levou o questionamento ao marido quando este chegou em casa. É possível a Deus duvidar? Provavelmente sim, indicou o esposo convicto, mesmo em dúvida. Lembrou a ela de que tudo é possível a Ele. Mas duvidar da própria criação? Surpreendeu-se ela própria com a contra-argumentação que lhe surgia e foi preparar o jantar com a ajuda do marido, ambos incógnitos. Ambos amam e isso é suficiente apesar de não saberem.
O suficiente é sempre mais importante do que o desejado. Na verdade o desejado é sempre mais importante, equivocadamente. Acho que as vezes não me basto e crio pessoas que vejo na rua. Dou-lhes história, sentimentos, problemas e até pensamentos. Sou bondoso com elas na maioria das vezes por identificar-me com suas dores e alegrias. Não sei o que ando fazendo da minha vida, se atiro pedras e muito menos se Deus duvida de mim, mas tudo me preocupa e me sinto melhor assim.
É necessário boa-vontade aos homens e isso estes homens que crio têm. Se fosse escrever a um extra-terráqueo relatando a ventura de viver na Terra, diria: pode não parecer, mas boa vontade não falta a estes meus companheiros. Talvez lhes falte um lugar, diferente de todos que conheço onde eles caibam juntos. Olho no mapa e acerto com os olhos: Boa Esperança aos homens de boa vontade. Seria suficiente, não?
Márcio Maffili
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2 comentários:
Márcio,
Pude, com calma, conhecer "o outro lado de cá". Que legal reencontrar esse texto, logo na primeira página, do qual gosto em especial. Tem pureza e verdade nesses personagens. Fico feliz que esteja publicando seus textos. Um abaço grande,
O poeta mostra a alma, assim sem vergonhas, abre o coração e derrama o que colheu da vida semeando outros e plantando sua futura colheita num campo de desejos...Parabéns.
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