domingo, 12 de abril de 2015

Pingos nos i’s dos mimimi’s

Nova manifestação nas ruas do país. Inevitável as pessoas me perguntarem se eu comparecerei, num misto de curiosidade se a um servidor público é vetada participação e talvez porque, apesar de ter posição diante da situação, nunca fui a uma destas.
Primeiro penso na motivação. Na verdade, busco encontrar uma causa que me faça sair de casa e ecoar nas ruas e não um grito sozinho. Não vou agredir a presidenta que o povo brasileiro elegeu em um processo democrático. E não, não vou agredir também os parlamentares que estão lá porque também foram eleitos pela população dos seus estados Bem ou mal, os representa.
Depois penso nas propostas. Não quero impeachment sem provas. Não quero um novo Congresso (não da forma que propõem) e muito menos penso ser a ditadura uma saída cogitável.
Vejo que a reforma que precisamos, seja tarifária, política, educacional e porque não econômica, deve ser iniciada por uma reforma de princípios íntimos.
Confesso: às vezes também caio na tentação do “jeitinho brasileiro”, mas busco me policiar. Não intento mesmo ser santo, contudo, via de regra, a minha manifestação eu faço no meu dia a dia. No meu trabalho, quando ando pelas ruas e converso com amigos.
Se nos interessa mesmo o futuro do país, ou um país do futuro, produza para isso. Dediquese ao seu trabalho, cumpra suas metas, seja honesto. Estamos muito longe do nosso rendimento em quase todos os setores, quando comparado à capacidade instalada de produção. Não percam tempo culpando, defendendo, apontando o dedo.
Sabe por que digo isso? Porque o que vejo na rua hoje é a expressão exata do que vi na última eleição. As pessoas votam por interesse e benefício próprios! Enquanto não mudarmos isso, não adiantará bradar por reforma. Como cobrar de um parlamentar que não haja por interesses próprios quando nós mesmos o elegemos para isso?
O Brasil que alardeou vantagem em passar quase ileso da crise de 2008 é o mesmo hoje, talvez esteja inclusive em posição melhor que à época. A diferença básica de lá pra cá é que um projeto político dos principais partidos brasileiros especulou mais que podia, para o bem e para o mal, e o brasileiro comum, no meio da queda de braço é hoje quem sofre os efeitos dos juros e impostos mais altos, inflação e provável recessão técnica em curto prazo que coloca em risco os salários e empregos.
Um pacto nacional pela pátria e não pelos interesses partidários e pessoais é fundamental agora. O cenário é favorável, creiam. É na dificuldade que os objetivos comuns se tornam mais claros, nos distanciamos do próprio umbigo e podemos somar pela recuperação do país. 
Acreditem: a maioria dos brasileiros passa por problemas muito maiores que não poder mais viajar pra fazer compras em Miami. 
Por fim, ser intolerante é feio demais. A intolerância na história da humanidade só levou a caminhos obscuros. Respeite a opinião das pessoas e a posição delas. Talvez, na minha visão, este seja o legado das manifestações: brasileiro redescobriu a rua, redescobriu que pode ter opinião. Ainda falta saber para que. O resto é selfie inundando as redes sociais e falsas intenções da mídia.

Marcio Maffili, 12 de abril de 2015

terça-feira, 7 de abril de 2015

Dos Atos 

Encostado na porta. Ouvido colado no verniz fino e já ressecado. Via a luz por baixo do vão, entre o chão e o tapete e pensava na tranca. Não tinha chave no bolso. Só a vontade de girar a maçaneta e ela se abrir. Enfiou a mão em todos os bolsos da calça. Em vão. No vão das ideias, o risco maior era não arriscar girar a maçaneta. A frustração menor era tentar abrir. E se por ventura a porta estivesse destrancada, mas emperrada?
Trovoa lá fora. Ou cá dentro? Virou do avesso a roupa, bateu a poeira, estava tudo ao contrário do que queria. Doía na pele o ranço da noite escura. E pela fresta um clarão.
Até que raspou a ideia numa farpa: todas as noites partia. Partia de si. Partia do que acham dele. Quem era, afinal? Partia pra onde? E se partia, partia em que? Quantas partes cabiam naquele viver? E se partia, dividia? O coração de vez, numa partida só...
Coração, aguardo trégua, vá lá... Essa guerra se acotovela no meu peito. Abre caminho meio sem jeito. Aperto duro como beliscão. O que vai sobrar de mim? O que falta de Tu em mim, meu Deus, que me dá esta angústia?
Sem resposta. Vento seco no corredor sem fim.
Acotovela-se no meu peito um ser burro. Desses que empacam diante do invisível, resmungam e não seguem caminho que não seja voltar. Mas no fundo, guarda o sonho de chegar lá pra onde não se vai mais...
Silencio além da porta. HOuve a inspiração profunda de alguém do outro lado, que toma fôlego e diz baixo num único sopro:
Quanto vale um sonho? Quanto custa abandonar um sonho? Quanto vale não ter um sonho? Quanto custa viver um sonho?
Inspirou de novo:
Sempre que alguém sonha algo, nasce uma estrela no céu. Sempre que alguém abandona um sonho, apaga sua luz sobre a Terra.

Girou a maçaneta fria e empurrou firme. A porta estava aberta. Ele entrou!

Marcio Maffili, 07 de abril de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

Volta numa volta (17 de março de 2015)

Não  posso deixar que aos 5 anos chegue sem publicar.
Não posso simplesmente voltar, sem explicar por que fui,
Não posso muito menos voltar, sem dizer o que me traz de volta.
Pude sim deixar que o tempo passasse e a ferida fechasse.
Pude sim voltar, mesmo vendo a cicatriz marcada na pele.
Pude sim, mais solto, dizer que ouvi sua mensagem hoje:
Volte em paz.
Traga seus tons, hoje outros.
As mãos são as mesmas, poesia há de vir aos poucos.
Volte numa volta;
O Mundo já deu tantas desde que você nasceu.
Uma sua há de fazer bem!

Do outro lado de cá, até passarinho canta suas palavras.


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Há vidas que chovem

Saiu de casa um dia, ainda nem havia feito a digestão do almoço e foi até um circo que sempre se armava perto de casa e ali comprou um algodão doce imenso, que mal equilibrava com apenas uma mão tesa presa à vareta de bambu. Dando voltas, lambuzou-se nas memórias. Elas nunca se apagaram com o tempo que queimou um pouco a retina, mas não ressecou o coração quente.

Mentira. Não era muito afeito a doces. As memórias se prendiam ao condensamento de leite à mais crocante maisena, acrescidos de uma pitada de poeira doce de cacau. Mistura a qual chamava de palha italiana – estranho nome para uma goma escura açucarada do melhor bom gosto dos tachos.

Ainda criança tomou o costume de andar sempre com um guarda-chuva debaixo do braço. Podia estar fazendo um sol de inverno, seco e frio, que lá estava o pretinho e magrelo companheiro em seu suvaco. Não era medo de chuva que ele tinha, até se deliciava nela. Sempre gostou das tardes quentes, quando sem qualquer aviso o céu se transborda em pingos que, fervidos pela quentura do asfalto, abraçavam sua pele. O guarda-chuva não era para o modo de usar a que seu nome se propunha. Ele o carregava temia as lágrimas dos homens, mais catastróficas que as maiores tempestades.

A primeira lembrança de choro que tinha era do dia em que procurou sua avó no quintal, na casa, na rua e nem seu cheiro estava mais no ar. Aquele menino cheio de porquês, engasgou-se da pergunta e só entendeu o que tinha acontecido quando viu naufrago no fundo do aquário seu peixinho vermelho, jogado depois de morto na privada, restando apenas lembranças.

Dizem que nunca chorou; nem ao menos um choro seco foi visto por qualquer naquele rosto moreno, liso e brilhoso. Vivia pagando barato pela simpatia alheia bastando mostrar os dentes alinhados e brancos, pechincha de feira, apesar de mercadoria rara nestes dias de “eus”, “nem vi”, “tô com pressa”. Uns até arriscariam dizer que, ao nascer, o médico lhe deu um tapa na bunda e do engasgo ele sorriu. De canto de boca, mas era clara a intenção do gesto. Dai respirou, mesmo doloroso, o ar novo e logo depois caiu em gargalhada gostosa, de bebê sadio acometido de cócegas simples ou alegria gratuita.

De bebê sadio a criança quieta e inteligente, pouco se passou. Umas estações, alguns verões e muitas águas a beira do rio, a beira da mesma calçada, dos mesmos andares.

Vivia se questionando se é Deus quem nos dá os sonhos pra nos mostrar as possibilidades do que ele mesmo pode nos oferecer ou se Ele, em Sua bondade, poderia escolher dos nossos sonhos o que viveríamos. Preferia a segunda hipótese, lamentavelmente a menos provável já que ainda apesar de só sonhar com um mundo melhor, pouco se via neste sentido.

Era um caso raro de vida reta. Ele mesmo deve ter mostrado aos matemáticos a plenitude das paralelas e o paradoxo de nunca se encontrarem, nem mesmo na infinitude do universo. Um dia disse a uma de suas namoradas que a melhor definição natural para o fenômeno eram as gotas de chuva que, mesmo lado a lado, só se encontram quando deixam de cair e já não são mais gotas e sim enxurrada. E, por paralelismo das idéias, acreditava na transformação dos homens em anjos através do amor ao próximo, quando se muda o rumo da vida na direção de um outro ser humano, tão ou menos humano que nós mesmos.

Não gostava da idéia de envelhecer, mas as rugas insolentes se abriram, mesmo assim, no seu rosto, na borda dos olhos, na testa tesa.

Enviuvou-se por 2 vezes e, sem filhos, passou a morar com o irmão mais novo, sua esposa, 2 filhas, 2 cachorros e 5 periquitos.

Até que, num dia o sol amanheceu dormido no canto da janela do seu quarto. Morno e preguiçoso, acordou-o em cócegas com a visita dos seus raios leves que levavam consigo a mansidão da noite pra bem longe.

Uma chuva se aproximava. Nuvens enchiam o céu e muito lhe lembraram das noites em que sozinho ouvia a tempestade cair, escorrendo pelas paredes, lavando as calçadas e se afogando pelas galerias num rio, como se aquilo fosse a única coisa possível a se fazer. Decidiu-se por sair assim mesmo, após o almoço.

Comprou um algodão doce por ali, vendo as crianças correrem entre brinquedos coloridos e barulhentos e desatou a andar, como se tivesse sido impedido de usar as pernas pela vida toda e agora se maravilhasse de sua capacidade locomotiva.

A caminhada estava tão agradável que nem se dava conta do caminho que fazia. Resolveu sair de casa, sem avisar ninguém: queria andar, se possível até o mar. Sentia um perfume sensível no ar da rua. Misturava-se a cada vapor emanado pelas pessoas e formava novas e deslumbrantes fragrâncias numa coreografia invisível aos olhos, mas mesa farta para seu nariz. Era um cheiro macio de não-sei-o-quê maduro com dia de Natal na casa da vó. Era uma tarde qualquer, de um dia qualquer, sem qualquer pensamento apurrinhando a cabeça.

Quando deu por si, seguia os pássaros que, neste fim de outono, o levaram até o cemitério. Sentou-se numa praça entre os salões de velório, e pôs-se a observar o vai-e-vem de saudades adiantadas e tristezas impronunciáveis.

Neste dia, deixou em casa descansando atrás da porta da sala o seu companheiro de sempre e a chuva só não molhou mesmo suas entranhas salgadas quando, ali sentado observando os corpos vivos e mortos, o céu decidiu regar as sementes, as sementes que já são árvores e as árvores que já se carregam de frutos e flores, suculentos e perfumados.

A hora, criança manhosa cheia de graça, iniciou uma brincadeira. Pique-esconde. Saiu correndo e, antes mesmo dele começar a contar, desapareceu debaixo daquela chuva, entre árvores e túmulos. Na falta do tic-tac para ritmar o coração, a vida suspirou no silêncio que se aportou no seu peito ainda cheio.

E então uma lágrima escorreu do seu rosto. Era a tristeza de não poder mais viver sua felicidade na terra. Os anjos vieram buscá-lo em revoada como numa procissão sem matraca, sem rumo, sem rua, sem céu. Naquele dia nenhum homem chorou debaixo de qualquer guarda-chuva que fosse.

A vida então parou. A antítese do sonho vivido, da morte ressuscitada em chuva, do espírito preso a uma fagulha de alma.

E, provavelmente pensou: “um dia a gente aprende a não deixar a vida passar ... feliz de mim que descobri isso ainda aninhado no ventre da minha mãe”.

E assim se foi.

E assim foi.

Márcio Maffili Fernandes (01/09/10)

domingo, 2 de agosto de 2009

A carta nunca lida (referência ao texto “Carta de amor”, publicado neste blog)

Amor,

precisava verbalizar, mas meus olhos, reféns dos teus, não poderia lhe encontrar. Desculpe o meio, mas esta carta é a última súplica em ação.

Depois que você se foi, a última luz que me sobrou foi a brasa do cigarro que você deixou aceso no cinzeiro, à beira da cama, no chão. O velho cinzeiro, único objeto seu ainda na não mais nossa casa. Não minha, não sua - apesar de ainda gastar minhas horas entre estas paredes fartas de nossa vida, de nossa história, nossas despedidas, nossos pedaços e marcas. Manchas na parede que marcaram a alma com os dias vividos juntos. E agora sobrou a luz vaga, esfumaçada e buliçosa do cigarro, prestes a findar e me deixar na escuridão novamente com o calor do seu corpo ainda radiando o ar ao meu lado.

Oh Deus, arranca do meu peito este vazio de não te ter mais, que me tira cada segundo da vida. É no tic-tac do relógio que vejo quanto tempo deixei passar. E em observar vou deixando cada segundo passar como se cada badalo do pêndulo fosse um espinho a entrar no meu pé sem deixar nenhum pedacinho sequer pra fora, pra puxar com uma pinça.

E é com os pés feridos que sai perdido, sem rumo por estas vielas escuras e sombrias, perto de casa. É que olho para o céu cinza-chuva da madrugada e peço para que o sol venha logo me aquecer. Faz um frio ventado enquanto a cidade se aquece em seus cobertores e camas. Olho as luzes dos postes que são juntas todos os caminhos da cidade, mas nenhum poderia me levar até você. Este rumo já não existe mais, é trilha fechada na mata que cresceu no meu coração.

Na volta, o porteiro se mostrou preocupado. Vacilou ao me entregar a chave do terraço: "olhe, não me vá fazer nenhuma besteira bêbado deste jeito!" Subi os 12 andares pelas escadas rodando, rolando, elevando. Elas me deixaram mais tonto que o whisky barato daquele buteco ali perto do Mercado Caiçaras.

Há muito não vinha aqui do alto ver a cidade. Para ser bem sincero, evitar todas as festas dos vizinhos no terraço fez com que minha única recordação daqui fosse ao seu lado, no primeiro dia de “nosso lar”.

Foi quando o sol começou a rasgar o céu e me dividir em quente e frio, e eu na metade, que me lembrei de que naquele dia, ali mesmo, você me olhou fundo nos olhos, pegou minha mão e deu um beijo de palma. ”Tome um beijo pra ti ... que é pra guardar pra um momento de necessidade”. E este beijo prescrito você me deu agora, sufocado pelos anos guardados pelos poros da pele.

No meu silêncio, seguirei a sombra dos meus passos. Não se preocupe, estarei acompanhado de minhas histórias. Tão poucas que repetirei as mesmas a esmo até chegar a contar tantas vezes que mudarei seus rumos e virarei lenda sem autor, folclore de minha já falta de lembranças reais.

E quem sabe, quando não houver mais história alguma, eu pare à beira do caminho e volte. Simplesmente assim, inventando uma vida nova, diferente. E quando chegar ao ponto de partida não terei mais que aceitado que tudo já estava em seu lugar e que no fundo a insatisfação é minha. Basta torcer a alma encharcada de lágrimas e seguir seco.

Márcio Maffili Fernandes (02/08/2009)

terça-feira, 9 de junho de 2009

À espera

Escorrendo felicidade dos olhos, em trilhas pelas bochechas vermelhas de frio, correu ao encontro daqueles braços que o abraçavam por inteiro. A pele quente de saudade aquecia novamente a alma. As mãos ávidas por se afundarem naquele corpo apertavam o outro o mais forte possível contra si, numa tentativa de fundir duas metades inteiras por nascença, mas separadas para um dia se unirem em comunhão de dias com mais horas que as horas para se dar mil voltas ao mundo! Plenitude assim não acontece da noite pro dia. Minto.

Esta era a imagem que estava na cabeça. Sentado a beira da cama, com os pés descalços na cerâmica fria do chão e os olhos fixos naquele retrato papel de parede em que apareciam sorrindo. Sorriso cúmplice de quem guarda pra si uma história de criança, de brincadeiras, roda e pique-pega. Inocente a imagem ali posta, natural. E muitas lembranças de pouco tempo juntos, mas intenso como deve ser o tempo dos amantes que se amam escondidos pelas brechas do dia. Apesar de não serem amantes e sim amados.

Pensava no dia que estava por chegar, mas sobretudo nos dias que ainda restavam aguardar. Longa espera de cinco dias. Como dizem os mais velhos: “o tempo passa, meu filho”. Mas nestas horas – na confusão de dias longe e ansiedades por satisfazer – cada segundo é travado pelo estalo do relógio regulando hora de acordar, hora de trabalhar, hora de comer (...) Só se esquece de anunciar a hora de tirar a cara de bobo do rosto e aquele sorriso ansioso por ser mordido novamente.

Triste é a ansiedade. Pior que a fome que mata. Aquela não deixa nem a possibilidade de remissão pelo apodrecimento do corpo. A ansiedade é como um homem morto de fome, repleto de sementes, terra, sol e água a tentar enfiar goela abaixo do chão crespo os embriões de vida. Regar e deixar a luz do sol fertilizar. Mas nunca ver sequer um ramo verde brotar do abotoado marrom que já inunda o corpo e a alma. Desejoso quase de comer lama e as sementes torradas pelo sol para não passar a fome de esperar.

Dormir também é difícil. Inquieta-se ao deitar pois não sabe se o sonho que se tem é a vida real ou se a vida que levamos acordado é na verdade o sonho que vivemos enquanto nossa alma dorme, inconsciente e letárgica neste corpo – sopro de Deus em direção ao nosso crescimento.

Cinco dias se passaram. E tudo aconteceu tão diferente da imagem que fez. Foi muito melhor.


Márcio Maffili Fernandes (09/06/09)

sábado, 8 de novembro de 2008

Um anjo triste


Era noite sem estrela, sem nuvens, sem chuva, sem lua. Podia-se dizer que naquela noite o céu havia sumido, mas ninguém ainda tinha dado o fato por percebido. Inclusive eu. Até que, em uma última súplica, recorri aos céus e dei de cara com o inexplicável. Digo última súplica no sentido de já ter recorrido a tudo o que se possa imaginar dentro da minha cabeça: pensar na vida de forma sistêmica, tentar ver pelo outro lado (não sei nem exatamente o que isso quer dizer na verdade, quando nem sei de que lado certo me encontro), pedir ajuda a amigos e algumas outras coisas. Ou seja, tudo - para não dizer em vão -, não funcionou muito bem ou como esperava.

Estava em casa, antes de uma festa do trabalho. Fim do expediente de sábado e todos foram para suas casas, descansaram, juntaram-se aos esposos e esposas, namorados e namoradas, alguns com seus filhos também, e trataram de se arrumar e de se perfumar. Eu ainda estava no “cheguei em casa”, já há um tempo. Isso porque após abrir a porta nada fiz. Minto: coloquei a pasta no sofá, tirei o casaco e o sapato. De meia, à beira da janela, estava olhando a cidade e seus movimentos desgrenhados e todas as luzes se acendendo, iluminando mais um pôr-do-sol. Do alto do meu apartamento, podia ver os últimos raios de luz tocando os prédios mais altos e as sombras já engolindo as ruas e tudo que nelas estivesse. O céu foi escurecendo até não se ver mais o astro, devorado por outros prédios e pela fumaça da cidade. Mas como já disse, ao invés de um céu, não havia nada sobre as cabeças de todos. O que surgia no lugar do azul era um desbotado e opaco nada. E logo quando eu mais precisava olhar para o alto, mirar uma estrela e pensar em Deus, esquecendo as coisas mundanas e como elas nos transtornam sem necessidade alguma.

            Abri a janela e percebi que, sem o céu, o vento havia sumido. E pensava. Quando tinha lá os meus vinte e alguns anos deixei que minha sombra me seguisse, achando que ela pudesse me alcançar sempre. Até que um dia olhando para trás vi q ela havia se perdido entre os postes. E o que é um homem sem sombra? Sem passado? Sem história? Não consigo mais me lembrar dos tempos que se foram. Lembro do hoje, do presente, mas do que um dia foi, vivi e fugi, eu me esqueci. As lembranças se perderam num bosque como borboletas recém saídas do casulo tentando voar entre os galhos, folhas e flores. O que elas encontraram pelo caminho, quem as viu passar, eu também não sei. Sei que eram tão leves e até capazes de subir com a brisa chegando às nuvens e de cair com uma chuva fina. E se numa poça alguém as encontrar, provavelmente não dará a devida atenção, até que correndo pelas sarjetas se perderá num rio e quem sabe desaguará num oceano imenso onde um peixinho possa comê-la e sentir-se saciado. E a vida tem sido assim desde então.

Com a boca seca, fui até a cozinha ainda de meia e sentia o chão frio nos meus pés ao encher o copo d’água e era possível escutar a voz da minha mãe dizendo: “vai acabar gripado, depois não reclame”. Foi sempre assim, até eu sair de casa. Ouvi um vento muito forte abrir as cortinas e esvoaçá-las. Assustado, corri para ver o que era.

Com um grande sobressalto e um copo espatifado no chão, entrei na sala. Havia uma pessoa sentada no parapeito da janela, vestida por um branco mais puro que o mais fino algodão. Tinha os cabelos finos e leves na cabeça, na altura do pescoço, estava de costas para mim e não podia ver seu semblante, se era homem ou mulher. Apesar do espanto inicial, algo deixou meu coração tranqüilo e em paz. Havia uma sensação renovada no ar, um cheiro doce e delicado como baunilha. Quando ia dizer algo, só escutei um pedido de silêncio, como se o fizesse a um bebê recém-nascido para que se acalmasse no colo: shiiiiiiiiii...

Fui andando devagar em direção a janela, sem qualquer medo ou sobressalto. Uma força parecia controlar meus impulsos e me fazia agir como se tudo aquilo fosse natural. Ali cabisbaixo, apontava lá para baixo com suas mãos suaves e cuidadosas.

E foi exatamente aí que me dei conta de que aquele menino de sorriso honesto, olhos tristes e ternos que passava na calçada e eu observava minutos atrás, era eu.  Ainda jovem, sem rugas, sem máculas, com cabelo. Um anjo, e não as borboletas veio me recordar daquele menino filho de Deus.

            Era como se o mundo fosse este de agora com seus prédios novos, carros modernos, modas outras, mas ali estivesse minha recordação viva, lá embaixo na rua. Apesar de distante, podia ver com detalhes cada expressão no rosto daquele garoto-eu. E não foi como se passasse um filme da minha vida. A sensação que eu tinha é de que nunca deixei de ser aquele que eu via, que ele continuou sempre a levar a minha vida, independente de mim.

            Foi ai que pensei em quando eu o abandonei e quis ser adulto. Em que esquina ele ficou para trás sozinho, perdido, sem rumo? Isso era o que menos importava naquele momento. Meu ímpeto era de correr até o elevador e ir atrás dele na rua me afogar entre as pessoas e carros até poder olhar aqueles olhos, que nunca tiveram a chance de ver no que deu a minha vida. Mas tive uma vergonha imensa de mostrar que, de todas as expectativas, só restaram frustrações.

            E foi assim que entendi o que era realmente a felicidade e sua expressão mais bela e fiel na vida. Pra começar o anjo estava triste sim, mas porque já havia tentado falar comigo diversas vezes e não conseguia ser ao menos percebido por mim. Depois, ver eu ali naquele tempo, hoje já distante, me mostrou o quanto era feliz e sabia! Era a felicidade em sua expressão mais natural e pura. Aquela que não se compra, não se pede, não se ganha nem do Papai Noel.

            A felicidade estava ali, estampada naquele eu andando na rua porque tinha um mundo de oportunidades na minha frente. Ali estava claro que poderia criar as expectativas que quisesse, esperanças que na minha cabeça brotassem eram fontes das mais abundantes de minhas fantasias. A felicidade não está em si na realização, mas sim em apostar em algo e acreditar. É ter fé no amanhã, mesmo tendo que ir a pé pra casa pra poder comprar cem gramas do biscoito mais gostoso do mundo - de nata com cobertura de chocolate - para ter a sensação de seu desmanchar na boca. E andar a pé ser uma oportunidade de estar com os melhores e mais importantes amigos. Compartilhando aqueles biscoitos e a vida em si mesma! Risos, lágrimas, sonhos, dores, saudades. Ou apenas rir das pessoas na rua a nos olhar sem entender aquelas gargalhadas, ou o pranto jorrando pela face.

            Foram muitos passos juntos, muitos dias, muitas palavras, muita sola de sapato e muita dor de barriga de tanto rir!Muita felicidade sim!Inocente, clara, leve, sem culpa!

            Foi me lembrando disso tudo que, ao observar melhor, vi que o menino-eu não estava sozinho lá na rua. Havia três amigos com ele. Um calmo e amoroso companheiro de estradas diversas; um astuto, bem humorado e inteligente parceiro de vida; e uma moça, Capitu de Machado, fruta doce de quintal como pitanga.

            No balanço das lembranças, o anjo num salto sumiu pelo vão da janela acenando um adeus e esboçando um sorriso de canto de boca. O céu se fez estrelado e já não via aqueles quatro andando na rua.

            Preciso encontrar aqueles três e eu. Mas como faço isso nestas ruas tão cheias? Se você os reconhecer por ai, pare-os na rua e diga para aparecerem aqui em casa! E que tenho saudade do abraço. E que estou preparado para ser feliz de novo.

Eu corri descalço até a calçada, mas já os havia perdido de vista. Ah, diga também para que tragam todas as borboletas que encontrarem pelo caminho!

Márcio Maffili – 8 de novembro de 2008