domingo, 7 de outubro de 2007

À luz de vela ( 13/10/2005)

Preciso confessar alguma coisa a você; ou várias: não sei até quando você suportará me ver falar. Na verdade quer realmente saber? Todas as pessoas que procurei nestes tempos não me deram muita atenção e me restou apenas você. Não porque tenha pouca consideração por quem representa pra mim, não é isso, me entenda: me é difícil ser franco contigo, apenas isso, o que já se faz muito.
Pensando melhor não perca seu tempo comigo. Antes pararmos por aqui, não ficarei chateado. Sozinho me viro e continuamos companheiros. Digo isso porque talvez lhe doa um pouco também. Tenho a alma dolorida e a comunhão do sofrimento é perigosa demais. ( Pausa para pensar e decidir em seguir ou não.)
Há um tumulto lá fora. Corre-se atrás, de, para - sem nem se saber o passo. Ninguém percebe o próprio passo. O som é quase ensurdecedor. Quão vorazes são os homens, somos nós, eu e você, embora não creia nisso. É isso que me assusta. Mas você não sabe disso, de mim, da pobreza de minha alma. Sou inofensivo, contudo não sou um anjo, não sou verdade. E isso é por demais cruel.
E de frente ao espelho do banheiro é que vacilo em acender a luz. Não enxergo nada há dias. Só o barulho abafado pelas portas e janelas toca meu corpo. Encharcado de banho, respingo no piso e formo poça, como se derretesse ali estático diante da pia. Eu a poça. Penso em me desfazer com ela entre as frestas e rejuntamentos e escorrer pelo ralo. Mas temo tudo; quase tudo: frio, fome, solidão, incapacidade, altura, escuro...medo de ter medo.
Num estalo faço a luz acender com os dedos enrugados d'água. Abra os olhos e me vejo cego diante do espelho. Vejo apenas reflexos em flashes de claridade e escuridão. Estou tonto e reuno forças para me manter de pé. Me apóio na pia sem vê-la. Pela primeira vez enxergo: por isso a cegueira.
Diante dos meus olhos a vida se desembaça no espelho. Pouco a muito, com a ponta dos dedos, desmancho a névoa que escorre em gotas frias. Dói como se parede eu fosse e tivesse a tinta arrancada em cascas com uma espátula de aço. E aos poucos se expõe o reboco, aspero, grosso e feio. E frágil. Me envergonho ao me mostrar assim a você, sem as belas molduras com paisagens de antes.
A água do meu corpo ferve com a febre que me percorre. Penso em apagar a luz, ainda não vejo direito e me surpreendo com o passar da dor. Você a viu vaporizar com a água?
Um clarão muito forte interrompe o banheiro. Um trovão muito claro treme janelas, paredes e a luz se apaga. Só então ouço a chuva que gotejava há tanto tempo no vasculhante. Obrigado a esta nova cegueira de luz, fico ansioso por ver o espelho. Onde está sua imagem? O que se vê em um espelho no escuro? Com a mão ainda a desembaçá-lo, sou tomado por forte ansiedade. Tenho certeza de que agora posso ver, mas sem luz...não posso te tocar.
Corro ainda nu a tatear movéis pelo corredor, sala, cozinha. Encontro vela no armário. Tropeço na mesa, fósforo na mão, fumaça e luz. Baça e insistente chama me ilumina. Volto ao banheiro e com os olhos de ver, lhe vejo. À minha frente, assustado, pupila dilata pelo negrume do ar, rosto respingado, imagem-reflexo. Toco ao avesso sua face angelical. Um mar inteiro se forma em seus olhos densos, penetrados nos meus.
Obrigado por me ouvir e me ajudar à sua forma: era tudo de que precisava agora. Não questione e nem precisa esboçar este sorriso tão lindo, sei que se feriu um pouco. Mas me perdoe. E me perdoe as imperfeições, serei mais forte de hoje em diante, não como tentei antes. Tudo me importa, você me importa.
Agora siga adiante, segue rumo. Estarei sempre com você, sendo você de hoje em diante. Sopro a vela e aguardo em pé a chuva passar.

Márcio Maffili

Um comentário:

Renato disse...

Achei bem legal. Aqui nesse trecho vc denuncia o engenheiro civil por trás do prosador: "Penso em me desfazer com ela entre as frestas e rejuntamentos e escorrer pelo ralo." Os rejuntamentos... Acho seus textos muito legais.