segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Despedida de Domingo (2005)

Bateu no peito a brisa fria da manhã. Teve pesadelos à noite. A cama agarrou-lhe pelos braços e pernas afundando o corpo no colchão. Teve sonhos perdidos no dia anterior. Preferiu assim levantar logo e ver o sol de março brotar no mar como flor orvalhada pela madrugada difícil. Esticou-se sob a luz que se aproximava e iniciou a colheita de quentes raios dourados. Embebedou-se de ar e, cambaleante, sentou-se à beira da praia.A noite havia sido sacrificante também para o mar em ressaca.
Reparou um redondo grão de areia úmida que, junto com tantos outros, colou em sua perna. Era translúcido como o pensamento que o ocorria. Encheu as mãos na areia e ali as escondeu por bom período. Sentiu-se acrescer de vida: energia nunca antes sentida, drenada do chão. A areia se aquecia e as mãos se molhavam.
Esqueceu-se do tempo e suas convenções de hora, nada convencionais. Permitiu-se ali estar. Deu-se folga hoje. Mas logo se lembrou de que era domingo e os afazeres, de qualquer maneira, só tinham agendado compromisso para o amanhecer de segunda. Dádiva divina: era realmente domingo. E de pijama estava na praia. Riu de si, para todos – que ainda eram poucos, era cedo, era um menino.
Lembrou-se do dia anterior. Preferia esquecer a maratona que foi a semana, os desesperos de ontem...em vão. Sentiu o escritório afundar novamente, andar a andar, no chão da rua. Via isso sozinho. Uma enxurrada tomou conta de tudo, choveu muito por lá. Trovões e relâmpagos. Mesas, armários, papéis, computadores, cadeiras e pessoas inundadas na confusão que se instalou. A responsabilidade recaiu sobre seus ombros, quando estava a se perder.
Atolado em preocupações foi pesado para casa. Retirou a roupa, banhou o corpo e tombou na cama. Ainda teve tempo de ouvir as fortes ondas quebrarem na orla, enquanto os dois comprimidos diários não o levavam ao pesadelo justo. A visão então turvou. A velha dor no peito veio visitá-lo saudosa. Revirou-se, debateu-se, mas acabou afogado no colchão.
Acordou anestesiado no meio da noite. Decidiu então ir à praia, onde o menino se alegrava ao jogar prateada bola no mar e vê-la voltar espumante, envolta em ondas. Uma paz inesquecível lhe banhou a cabeça.
Reconfortado, sorriu mais uma vez. Ergueu-se em súbito movimento, aproximando-se do garoto. E ali ficou, olhando o formoso volume d’água aproximar-se e arrancar-lhe areia por debaixo dos pés. Temeu cair, mas prendeu-se ao burilar da areia. Grão, sob grão, sobre grão. Esféricas individualidades, tão diferentes e tão semelhantes. Teriam passado por tantas praias, por águas outras e ali estavam compondo uniformemente a paisagem.
Foi quando ouviu silenciarem-se os risos da criança. Recordou-se criança e da criança, e a viu sentada com as mãos na face. A bola perdia-se no profundo céu de mar azul. Entrou na água para resgatá-la e quando já estava com ela nas mãos, cegou-se diante de reluzente anjo a descer do alto. Recolheu o homem em seus braços e pousou-o na areia. Acenou levemente e sumiu como havia surgido.
Sem pensar, correu até o garoto que com uma lágrima nos olhos e sorriso pleno tomou a bola de suas mãos e saiu em disparada, como quem convida a uma brincadeira. Olhando para trás disse:
-Sentimos sua falta.
Márcio Maffili

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