Calado silencio o som vazio da sala. Desligo a tv, tiro as pilhas do relógio da parede, fecho a janela e a porta para o corredor. A luz faz barulho elétrico sobre minha cabeça até que apago o acendedor. Ou talvez tenha acendido o apagador, não sei ao certo. Como vagalume urbano, o relógio do aparelho de som pisca azul ritmado iluminando a sua volta de forma especial.
Agora sim, só, sinto-me bem. Lembro-me do telefone e de seu fio até a parede ligando-me a qualquer outro do mundo que, como eu, tenha esta caixa plástica e porventura, ou desventura, saiba meu número. Não quero ouvir nem seu toque: abro a gaveta emperrada da estante e vou em busca da tesoura, entre contas e papéis inúteis. Com ela em mãos, faço meu próprio parto: corto o cordão telefônico que me liga ao mundo. Não há choro, apenas um suspiro; nasço para mim, tão somente isso tudo. Tenho frio no estômago como se tivesse engolido uma pedra de gelo, roubando meu calor. É tarde; que eu a espere derreter por inteira. Dói um pouco.
Não me reconheço, por um momento. Ali, sentado na poltrona, sem poder me escapar. Intimidado por mim, num salto, sento no chão e pela primeira vez sinto falta de um tapete no piso.
Há quanto tempo não limpo a casa? É preciso lembrar de ligar para a faxineira e marcar. Não agora: lembraria da poeira outra hora, assim como do celular. Não sei onde está. Este não tocará mesmo tão cedo, tão tarde que é.
A hora pisca: uma e vinte e três da noite. É a insônia que voltou, pensaria noutro dia. Mas não hoje. O sono emprestou seu tempo gentilmente para o pensar e um branco surge na mente. Pensar em quê? Pensar em que pensar e não encontrar seria pensar? Condenado, cumpro em cárcere privado minha pena, sem dores maiores, tristeza, angústia ou crime cometido. Na verdade, uma sensação “nunca dantes navegada”e sem razão me mantém sentado, quieto no chão, no meio da sala, no núcleo de mim. E que o resto gire por conta própria em torno, ao menos neste instante. Não seria assim necessário se este momento não estivesse ocorrendo, mas nele estou e sei o que me aguarda na porta.
Um ritmo surto inunda a sala. E no susto, aumenta continuamente. Procurando origem, levanto e me descubro bumbo: sinto o coração forte e apertado ecoando seu canto pelo ar parado. O bombear quente percorre artérias, extravasa pelos órgãos e me acolhe corpo inteiro. Envolvendo-me até a pele, os poros vão se abrindo e suo em ato solene. Brotam gordas as gotas no meu rosto. Fecho os olhos em busca de algum ar mais frio. Guio os pés pelos tacos e sofá chegando à janela. Abro o quanto posso o vidro e sem ver bate deliciosa brisa em meu corpo, contornando o obstáculo: eu. Arrepio a alma e suspiro aliviado apesar dos barulhos de fora. Então, cego, reinvento,céu, casas, prédios, ruas e pessoas. Tudo parece melhor – sem gritos, lamentos, murmúrios e pessoas.
Passos rompem pelo corretor ruidosa marcha, avisando a chegada de alguém, possivelmente um vizinho que, sem querer, iluminou pela fresta da porta parte do meu chão. Sou obrigado a encarar outra vez a carta de envelope azul no chão, intacta desde que ali se postara, provavelmente à tarde, enquanto estivera lá fora sendo parte do todo e nada me incomodava.
Ouço a aproximação de uma banda festiva e logo vejo um circo erguer lona, ali mesmo na minha sala. Muitas luzes, música! Levanta arquibancada, monta picadeiro e a platéia – pipoca, boca e olhos – lota as cadeiras aguardando o grande momento: a entrada do mágico. Quem? Eu? Tento fugir, mas até a saída há muita serragem a percorrer. Saco cartola e gravata colorida, sabe-se lá de onde, e com o olhar peço a banda o rufar dos tambores. Todas as luzes se voltam para o envelope. Faço pequena travessura com a garotinha de brilhantes olhos negros da primeira fila. Retiro uma rosa branca das mãos dela, sem notar que na verdade estava escondida em minha manga. Um assistente ( de onde ele saiu hein?) me entrega um monociclo. Dou voltas a girar e jogo bolas coloridas para o ar. No entusiasmo tento pegá-las e tombo. Silêncio. Apenas o som das bolas caindo e rolando até pararem.
Alguns se levantam e outros riem. Disfarçando ser a queda algo proposital, me vejo ao lado da carta. Recolho-a e apresentando ao público o último número, agora de pé, confirmo tonto a letra manuscrita com meu nome estampado. Reconheço a letra corrida, impressa para sempre na memória. Recordo de outros tempos, quando não temia o sentimento, agora dolorido, apertado. Por que voltara a escrever, a se aproximar? A distância era acordo: ainda tinha ferido o orgulho e amava. Sim, amo. Esqueci a platéia, quando um garoto gritou:
- Palhaço.
Enxugo a lágrima que desbrava meu rosto branco de pasta d’água, abro sorriso e dou o que me pedem: a mágica.
Lanço para o alto as palavras desconhecidas que tenho nas mãos. O quanto posso, contorço todos os músculos do corpo, entorto braço, giro pé. Subindo, o azul do envelope se confunde com a lona colorida e, suspenso no ar, ganha asas. Uma linda arara sobrevoa as cabeças atônitas e some pela lateral.
Convulsivo aplauso interrompe a ansiedade. Agradeço, ingrato. Fim do espetáculo; o circo segue seu rumo. Restam apenas pequenos sorrisos espalhados pelo chão, logo o vento os carregará para longe. Outros virão?
Exausto, jogo-me no sofá e rio de mim mesmo, gargalhada gostosa de devaneio. Ninguém percebeu o truque. Enquanto me contorcia, após fingir jogar a carta para o alto, guardei-a na gaveta ainda aberta, de onde havia tirado a tesoura. E lá repousa ainda lacrada, ao alcance. Pego a tesoura e a coloco sobre a carta. Com certa dificuldade emperro a gaveta em seu lugar.
Um dia chegará em que me esquecerei de tudo e quem sabe não me lembre de achá-la. Por enquanto, guardara as contas em outra gaveta, não quero encontros casuais. Penduro a cartola no prego da parede. Preciso deitar: uma e vinte e três da manhã pisca.
Márcio Maffili
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2 comentários:
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apenas fascínio pelo escrito!
fizeste um ótimo ato, espero ancioso pelo próximo.
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