A vida instante a momento foi perdendo sentido. Aos poucos não podia mais sentir o úmido aroma da tarde – fumegante aquecer luminoso do sol. Nem mesmo a fumaça com seu sufocar sensibiliza meu nariz, agora cansado e desiludido com tudo.
Meus olhos, encorajados pelo resto, já não se contentam mais com as plásticas cores, antes vislumbrantes lampejares de vida, agora dual branco-preto. Estaria então tudo preto-no-branco? Muita coisa ainda por entender, talvez por ser inexplicável o fracasso surpreendente do fim. Eterno era, mas restaram senão marcas, essas sim eternas.
Curativos e gaze na alma para tentar retomar o vibrante sentir do toque. Espremer-se no ar revolto como um pássaro em mais um mergulho sem fim no horizonte agora sem alcance. Não em profundidade: em leveza. Sibilar solenemente entre as rajadas de vento, sentir-se no todo, sentir-se tocado, envolto. Mas revolto, protesto e caio. Dor não há.
Em gotas, tento dissolver-me no infinito, mas somos imiscíveis. Sem rumo, acabo fragmentado e perdidamente enfraquecido.
A saliva da boca entreaberta ganha gosto: forte azedume desentendido. E a comida está morta, naturalmente exposta na sala de estar presa à moldura de madeira.
Espero. Ouço um ruído distante, diluído no tempo em que nos fizemos ausentes. Não pode ser um violino, mas o é. É suave e incessante: ressoam pelo corredor frágeis notas, batem no assoalho e refletem em mim. Rompendo o silente espectro do ambiente, me acertam com força. Passeiam. Traquinamente pelo corpo ainda inerte.
Do canto escondido, esbraveja o sangue querendo voltar a correr. Ainda morno, repousa nas veias e artérias ansioso aguardando seu destino. O pensamento-enfarte ainda se perpetua. Atônita, a massa corpórea sente-se esfriar, enroscada, enforcada, sufocada pelo obsessivo pensar.
Pensar agora no nada – o terrível e inatingível desfiladeiro de incertezas – pois o resto sempre se resolve, sempre a seu tempo.
A música cessou, é hora de resgatar a vida, ou não – todas as vezes a decisão é feita. Despertar e mais uma vez sentir o desenrolar do pensamento que apertava o corpo, parando o voluptuoso jorrar escarlate. Retirar um a um os curativos que sufocavam o tato. Deixar a membrana improvável que empapuçava o ouvido de silêncio romper-se com o causticante perfume do ar. Desentupir o enojado nariz e forçosamente descolar as pálpebras, acovardadas pelo medo de se arriscar a ver.
Não era a primeira vez que isso ocorria. A cada dia, como em um ritual, joga-se ao sofá e repete insistente esse ato. Não eu, ele: personagem entediado, parte de mim, que clama por um dia entender a vida durante a sesta do almoço.
Márcio Maffili
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2 comentários:
humm... inspirador... humm...
e curioso - para um engenheiro...hehe
Ol� meu car�ssimo escritor. S� agora vi o novo texto. Sua m�trica me surpreende sempre.
Tens, sinceramente, o dom das palavras. Acho isso interessante e sens�vel. N�o deixe isso apagar em voc�. J� � meio caminho andado para tornar-se um excelente escritor.
Aguardo um contato teu, M�rcio! Gostaria mesmo de trocar textos, opini�es. Sou um cara do bem e acima de tudo: amante dos textos!
Atenciosamente,
F�nix Livre (fenixlivremg@hotmail.com)
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