quinta-feira, 27 de setembro de 2007

SOMBRAS NO ESPELHO (2005)

Quando garoto, gostava de brincar com a sua sombra. Era como se o futuro deixasse trilhado o caminho a ser desbravado, ou então o passado a mostrar que deveria ser visitado, mas com certo cuidado. Mas isso só veio a perceber depois, bem depois, quando sol e chuva, paixão e ódio, alegria e tristeza começaram a duelar em sua vida. Não como paradoxos errantes e imiscíveis, mas como ramos que se entrelaçam e se perdem um no outro sem mais saber quem é um, quem é outro.
Andava quadras e quadras, voltas e voltas, ruas e ruas, recriando um mundo só seu, envolto pelas sombras ardentes do dia, ou pelo quieto reduto inalcançável pelos postes nas noites em que se desorientava a caminhar pensamentos.
Durante essas andanças, praticava olhar fundo nos olhos desconhecidos de algum passante. Penetrar-lhe calmamente a alma. Mas como de costume também, raramente encontrava alguém aberto a essa desmesurada invasão. Não tinha má intenção nisso. Apenas vislumbrava mergulhar na essência alheia, no que as pessoas chamam de subconsciente, nome que para ele não fazia qualquer importância. Bastava-lhe sentir o majestoso toque do olhar que se cruza e estar no outro nesse vão momento.
Vez ou outra roubava de alguma árvore intocável folha e aspirava a entender como tudo é magistralmente perfeito, até mesmo nos detalhes para ele mínimos, que haveriam de ser razão de existir para outros.
Não era criança de grandes amizades (em números). O motivo não era claro nem para ele. Na verdade, ele se bastava em sua pequenez. Evitava assim angústias desnecessárias e valorizava o que realmente valia: o amor. A quem amava bastava o menor murmurar para que mais que depressa ele viesse cessar frio ou tormenta que incomodasse. Amava com facilidade, não porque subestimasse tal sentimento. Para ele viver sem amar era como manter uma planta à sombra, não permitindo o seu desabrochar em perfume e beleza. E ele nem sabia que poderia esperar por algo em troca: doar-se era do que precisava.
Medos não tinha. Não haveria de existir a que temer. Perdas e desilusões eram apenas notas erradas em sua harmônica existência, a se perderem pelo espaço-tempo sem ferir sequer sua meninice, paciência ou graciosidade.
Esquecia-se do mundo ao procurar pedras, as mais belas, entre a terra úmida do quintal. E as guardava por apenas pouco tempo: queria sempre que alguém pudesse compartilhar de sua alegria ao garimpar essas pequenas preciosidades. Então as enterrava novamente, mas sempre debaixo de um seco limoeiro. Gostava da idéia de um dia alguém cavando as encontrasse sorrateiras a espreitar.
Tinha na face o frescor de quem enxerga todas as cores a pulsar em torno de si: amarelos melões, claras nuvens, celestes horizontes. E nessa convulsão do observar, apaixonava-se a cada instante pelo movimento. Carros e pressa não lhe interessavam: cinza demais. Preferia reparar a areia que, grão a grão, sobrerolando-se, toma forma ao menor toque. Achava também mágico o relógio de pêndulo da sala e suas badaladas, mesmo sabendo que seu marcar de horas poderia um dia fasciná-lo e torná-lo mais um daqueles.
Deitado para dormir, esfregava os pés contra o lençol, sentia cócegas enquanto aguardava o afago de boa noite. Pai e mãe nunca deixavam de embalar-lhe os mais loucos sonhos. Davam-lhe força para sustentar as asas. Podia voar até onde não aguentasse mais, apesar de ainda assim poder continuar até muito longe, sabe-se lá até onde.
E o despertador mais uma vez a lhe acordar rompendo barreiras atmosféricas. Os olhos assustados se abrem para o mundo mais uma vez para lhe mostrar no espelho do banheiro o reflexo da criança de outrora.
Não havia sonhado naquela noite e sentia-se explodindo por dentro. Algo o incomodava. Até que uma idéia pousou-lhe na cabeça já branca: iria voltar a ser garoto. Havia brincado demais e errado demais tentando ser gente grande. Era hora de verdadeiramente viver e lembrou-se de que, quando garoto, gostava de brincar com sua sombra.
Márcio Maffili

2 comentários:

Anônimo disse...

Amigo, já te disse isso, mas este texto me fez reviver emoções. Parabéns mesmo ( isso é uma verdade )
Escreva sempre assim e terá sucesso =OD

Iceberg disse...

sabia que este texto é um dos meus favoritos? só perde pro "Carta de Amor"...